STF definirá requisitos para configuração do crime de redução a condição análoga à de escravo.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral (tema 1.158) da matéria discutida no RE 1.323.70. O caso diz respeito à diferenciação das condições necessárias à tipificação do crime de Redução a condição análoga à de escravo. O Artigo 149 do Código Penal Brasileiro estabelece o seguinte:
Redução a condição análoga à de escravo:
Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.
O caso
O recurso que provocou a discussão no âmbito do Supremo Tribunal Federal foi interposto pelo MPF contra decisão da 4ª turma do TRF da 1ª região que absolveu um proprietário de fazendas no Pará do crime de redução de 43 trabalhadores a condição análoga à de escravo.
Segundo o TRF-1, a produção de provas foi deficiente, diante da ausência de depoimentos das vítimas, e a acusação teria se valido de elementos "comuns na realidade rústica brasileira", como alojamentos coletivos e precários e falta de água potável, de instalações sanitárias e de equipamentos de primeiros socorros.
Já o MPF sustenta que as condições em que os trabalhadores foram encontrados não podem ser consideradas "mera realidade local" e se enquadram na conduta tipificada no artigo 149 do CP, que equipara ao trabalho escravo aquele exercido em condições degradantes.
Assim, o STF terá de decidir a matéria com base nas normas constitucionais referentes à dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho, aos objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de redução das desigualdades sociais e regionais.
Histórico da situação
Este caso é o percursor da discussão em sede de repercussão geral, mas não é o único. As últimas duas décadas acumulam diversos casos semelhantes, de pessoas vivendo em condições semelhante à escravidão.
Em março de 2021, Madalena Silva, uma mulher negra submetida a condições análogas à escravidão durante 54 dos seus 62 anos de vida, foi resgatada em Lauro de Freitas/BA, por auditores do Ministério do Trabalho e Previdência (MTP). Seu caso ficou famoso por uma reportagem da TV Bahia em que a mulher expressou receio em pegar na mão da repórter: "Receio de pegar na sua mão branca", veja o caso:
No início de abril, o MPT ingressou com ação cautelar e pediu o bloqueio do dinheiro para garantir as verbas rescisórias e os danos morais que serão pedidos na ação principal. Em resposta ao pedido a juíza do Trabalho Vivianne Tanure Mateus, da 2ª vara do Trabalho de Salvador/BA, determinou o bloqueio de R$ 1 milhão em bens da família acusada de manter a idosa Madalena Silva, de 62 anos, em situação análoga à de escravo, pelo período de 45 anos. A liminar foi deferida em maio deste ano (2022).
Outro exemplo, é o caso de Madalena Gordiano, que foi resgatada no dia 26 de novembro de 2020, na cidade de Patos de Minas (MG), numa operação realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), pela Superintendência Regional do Trabalho (SRT-MG) e pela Polícia Federal (PF), após denúncias ao MPT de vizinhos que receberam seu pedido de socorro.
Ela ficou nessa situação por 15 anos. O Ministério Público Federal (MPF) denunciou o casal D.C.M.R. e V.L.R. e suas filhas R.F.L.R. e B.L.R.N. pelos crimes de redução de trabalhador à condição análoga à de escravo (artigo 149) e violência doméstica (art. 129, § 9º), ambos do Código Penal os acusados também responderão por apropriação indébita. O caso alcançou repercussão nacional quando foi noticiado pelo Fantástico. veja uma entrevista que foi concedida para o site UOL:
A mulher da casa abandonada
Um caso que também ganhou bastante repercussão é o de Margarida Bonetti, noticiado pela Folha de São Paulo no podcast investigativo "A mulher da casa abandonada". A reportagem trouxe a tona as acusações que ela e o marido, René Bonetti, haviam reduzido uma mulher negra brasileira a condições análogas a escravidão nos EUA, por 20 anos, entre o fim da década de 1970 e o começo dos anos 2000.
René Bonetti (naturalizado americano) chegou a ser condenado e cumpriu pena nos EUA, onde mora até hoje, mas Margarida Bonetti (brasileira) fugiu para o Brasil e apesar de ter ficado, por muitos anos na lista de procurados pelo FBI (a polícia federal de investigação norte-americana), nunca respondeu pelo crime.

Podcast: "A MULHER DA CASA ABANDONADA ESTÁ DISPONÍVEL EM:
https://open.spotify.com/show/0xyzsMcSzudBIen2Ki2dqV
https://www.youtube.com/watch?v=YsgkO39_MiY&list=PLEU7Upkdqe7Gy_dR5-4-4Sx28T3499XUF
Desde o ocorrido, Margarida Bonetti voltou a residir na casa de seus pais o médico Geraldo Vicente de Azevedo e Maria de Lourdes Danso Vicente de Azevedo, na mansão tradicional que leva o nome de seu pai, localizada no bairro Higienópolis em São Paulo/SP. Margarida também é neta de Francisco de Paula Vicente de Azevedo, denominado Barão de Bocaina, agraciado com o título de barão por decreto de 7 de maio de 1887. Faleceu em 1938, tendo sido o último titular do Império do Brasil a morrer.
A família ostenta vasto patrimônio, mas atualmente a mansão encontra-se em estado de abandono, devido a brigas no processo de inventário, o qual também acumula altas dívidas. Recentemente, a Justiça bloqueou duas contas bancárias de Margarida Maria Vicente de Azevedo Bonetti, tendo efetivado a penhora de R$ 83 mil. O bloqueio foi determinado em abril pela juíza de Direito Paula Velloso Rodrigues Ferreri, da 40ª vara Cível de SP, e é referente a uma dívida inicial de R$ 745 mil, com um condomínio, localizado na avenida Angélica, no bairro de Higienópolis, área nobre da capital paulista.

A "casa abandonada", mansão onde mora Margarida Bonetti, se encontra hoje em situação deplorável. Nesta quarta-feira, 20 de julho de 2022, o imóvel foi alvo de operação da Polícia Civil e da Vigilância Sanitária, tendo contado até com a presença da ativista da causa animal Luísa Mell.
Conclusão
Essas situações, são o retrato deste crime - Redução a condição análoga à de escravo (art. 149 do Código Penal). De forma que, a discussão que ganhou repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (RE 1.323.708) se mostra extremamente necessária diante dos inúmeros casos noticiados, sem contar os que ainda não vieram a tona.
Mas a situação de maior relevância na discussão é a definição de parâmetros para investigação e processo destes casos, visando evitar impunidades, como no caso do RE 1.323.708 e de Margarida Bonetti. Reduzir alguém a escravidão é, sem dúvida um atentado contra a Dignidade da Pessoa Humana e não deve ser tolerado, sobretudo diante a égide da nossa Constituição Cidadã.
RE 1.323.708 - Informações disponíveis em:
https://www.migalhas.com.br/quentes/351489/stf-definira-regras-para-condenacao-por-condicao-analoga-a-de-escravo. Acesso em: 22/07/2022.
Madalena Silva - Informações disponíveis em:
https://www.migalhas.com.br/quentes/365093/juiza-bloqueia-r-1-mi-de-familia-que-manteve-domestica-em-escravidao. Acesso em: 22/07/2022.
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/04/28/resgatada-apos-trabalho-analogo-a-escravidao-na-ba-se-assusta-apos-tocar-em-mao-de-reporter-receio-de-pegar-na-sua-mao-branca.ghtml. Acesso em: 22/07/2022.
Madalena Silva - Vídeo disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AuMr8t_D55s. Acesso em: 22/07/2022.
Madalena Gordiano - Informações disponíveis em:
http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/caso-madalena-mpf-denuncia-quatro-pessoas-por-trabalho-escravo-domestico. Acesso em: 22/07/2022.
Madalena Gordiano - Vídeo disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=tKo1corKxlc. Acesso em: 22/07/2022.
A mulher da casa abandonada - Informações disponíveis em:
https://www.migalhas.com.br/quentes/370285/mulher-da-casa-abandonada-tem-contas-bloqueadas-pela-justica. Acesso em: 22/07/2022.
Podcast: "A MULHER DA CASA ABANDONADA ESTÁ DISPONÍVEL EM:
https://open.spotify.com/show/0xyzsMcSzudBIen2Ki2dqV
https://www.youtube.com/watch?v=YsgkO39_MiY&list=PLEU7Upkdqe7Gy_dR5-4-4Sx28T3499XUF