O DIREITO AO ABORTO ESTÁ EM FOCO
Os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres estão no centro das discussões, sobretudo nas redes sociais. Isso se deve a três notícias de grande repercussão que trouxeram o assunto para a pauta.

1º. Em 20 de Junho de 2022, a agência de notícias independente "The Intercept Brasil" denunciou a recusa da autorização de um aborto legal para uma menina de 11 anos que havia sido estuprada e ainda trouxe a tona a violência sofrida pela vítima e sua mãe ocasionada pelo Próprio Poder Judiciário. "Suportaria ficar mais um pouquinho", disse a juíza do caso, tentando induzir a criança a desistir do aborto legal.
2º. No dia 23 de junho de 2022, a apresentadora Antônia Fontenelle em suas redes sociais sem citar nomes contou o que uma atriz de 21 anos teria tido um filho e entregue para adoção. Em seguida, a atriz Klara Castanho publicou em suas redes sociais uma carta aberta contando a realidade da história "fui estuprada".

3º. E, no dia 24 de junho de 2022, a Suprema Corte Americana reverteu o entendimento obtido pelo julgamento de Roe contra Wade, de 1973, o qual garantia o direito ao Aborto legal no País. Na prática não chegou a proibir a realização do aborto mas voltou o poder de decisão para cada estado confederado, reiniciando uma discussão que aparentemente estava consolidada a anos.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/368542/eua-suprema-corte-derruba-decisao-que-garantia-direito-ao-aborto. Acesso em 27 jun. 2022.
O ABORTO NO BRASIL
Em relação ao aborto no Brasil, vale lembrar que, apesar de atualmente ser considerado um crime contra a vida previsto do artigo 124 ao 127 do Código Penal, há exceções. O artigo 128 do Código Penal traz duas excludentes de ilicitude para o aborto, vejamos:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal - STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF n. 54 deu interpretação extensiva ao artigo descrevendo que "não se pune o aborto praticado por médico, com o consentimento da gestante, se o feto padece de anencefalia comprovada por junta médica competente, conforme normas e procedimentos a serem estabelecidos no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Sendo assim, em três situações no Brasil o aborto pode ser feito de forma legal. Ressalta-se que em todas as hipóteses não há limitação de tempo gestacional para que seja possível a realização do procedimento, basta que se enquadre em algum dos casos.
Ainda, a lei não condiciona o exercício deste direito a prévia decisão judicial e o procedimento é garantido pela rede pública de saúde - SUS. De forma que, em tese, bastaria a gestante comparecer ao hospital, com devida comprovação de enquadramento em algum dos casos: laudo médico indicando risco para a vida da gestante (art. 128, I do CP); Boletim de Ocorrência noticiando a ocorrência de estupro (art. 128, II do CP); ou, laudo de anencefalia comprovada por junta médica competente (ADFP n. 54 do STF), podendo então ser realizado o procedimento sem que o fato constitua crime.
O CASO DA MENINA DE 11 ANOS
Isso é o descrito na lei, mas na prática, como a maioria das coisas no pais, não é bem assim que funciona. Exemplo disso é o caso da menina de 11 anos vítima de estupro que teve o seu direito ao aborto arbitrariamente retardado, só conseguindo efetivá-lo somente após a denúncia do ocorrido pela mídia.
A criança compareceu a um hospital acompanhada por sua mãe munida do Boletim de Ocorrência comprovando o estupro, mas o hospital se recusou a fazer o procedimento, exigindo, para tanto, prévia autorização judicial. Não obstante, a genitora da vítima de 11 anos, adentrou ao judiciário buscando a autorização, mas ao invés disso teve sua filha retirada de seu convívio e internada em uma brigo, além de ter e o efetivo direito ao aborto retardado em completa legalidade.

Em entrevista para o editorial "Migalhas", a desembargadora aposentada do TJ/RS Maria Berenice Dias comentou a decisão da magistrada que julgou o caso: "foi absurda a decisão dessa magistrada e absolutamente contra a lei". Destacou ainda que o caso deveria ser levado para as cortes internacionais".
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/368255/absurda-decisao--diz-jurista-sobre-impedimento-de-aborto-em-crianca e em: https://www.youtube.com/watch?v=gCfF2ZZ9DHI. Acesso em: 27 jun. 2022.
Mas será que as cortes internacionais dariam tratamento diverso ao caso? A reviravolta na Suprema Corte Americana, umas das primeiras a reconhecer o direito ao aborto legal ainda em 1973, trás dúvidas sobre o posicionamento internacional em relação ao tema.
De fato, o direito ao aborto é um assunto muito controverso, principalmente por tocar em preceitos religiosos. E nesse caso, cada um tem sua crença. Porém, independente do que cada pessoa defende, deve-se observar os fatos de cada caso para evitar propagar a desinformação ou acabar contribuindo para mais sofrimento daqueles que são vítimas das situações.
A CARTA ABERTA DA ATRIZ KLARA CASTANHO
Tomemos o que aconteceu com a atriz Klara Castanho, que teve sua intimidade exposta e sua vida julgada por todos em um momento de grande fragilidade emocional. Questionada, disse: "como mulher eu fui violentada primeiramente por um homem e, agora, sou violentada por tantas outras pessoas que me julgam".

Nesse caso, a atriz também foi estuprada e se tivesse feito o Boletim de Ocorrência também teria direito, conforme a lei brasileira, a realizar um aborto se fosse de sua vontade. Entretanto, optou por parir e entregar a criança para adoção, seguindo o procedimento legal, afirmando que:
"Ser pai e mãe não depende tão somente da condição econômico-financeira, mas da capacidade de cuidar" complementa: "Eu não tinha (eu não tenho) condições emocionais de dar para essa criança o amor, o cuidado e tudo que ela merece ter".
Disponível no Instagram: @klarafgcastanho. Acesso em 27 jun. 2022.
Conforme ditames do artigo 19-A e seguintes da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), qualquer mulher que tiver um filho, independente da ocorrência ou não de estupro ou qualquer outra circunstância/motivo, poderá entregar a criança para a adoção desde que siga o procedimento legal, o qual deverá ser sigiloso. Assim, compreende-se que a atriz agiu corretamente.
POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE OS DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS DAS MULHERES
Como visto, os fatores que ligam esses três acontecimento que movimentaram as recentes discussões se resumem aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres. São casos de mulheres vítimas de violência em estado de vulnerabilidade que são indistintamente julgadas e revitimizadas enquanto seus agressores saem ilesos na opinião popular.
Em curto período, a sociedade discutiu dois casos de estupro, um em que houve o aborto e outro em que optou-se pela adoção. Dessa forma, podemos concluir que o tratamento jurídico que se deve dar ao aborto, especialmente no que se refere a sua criminalização ou descriminalização, não deve se basear na simples opinião intimo-ideológica de cada um, e sim em estudos sobre saúde pública, violência de gênero e demais fatores relevantes.
Atualmente, das excludentes de ilicitude para o aborto no Brasil, somente o caso de aborto como requisito para salvar a vida da mãe independe da expressa manifestação da vontade desta, nos outros dois casos: anencefalia e estupro, a vontade da gestante é condição para realização do procedimento. Consequentemente, aquelas que não desejem abortar não são obrigadas a fazê-lo e vice e versa. Nesse cenário, por que não estender a autorização independente de enquadramento em certas condições?

Em entrevista para o Migalhas o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, disse que: "Criminalização do aborto é uma péssima política pública", complementa que: "Eu tenho o maior respeito pela convicção religiosa de todas as pessoas. Portanto, eu acho que uma pessoa tem todo direito de ser contra, pregar contra, convencer as pessoas de não fazerem. Porém, quando você criminaliza, você não aceita que o outro seja diferente, tenha circunstâncias diferentes. Essa é uma forma intolerante e autoritária de viver a vida."
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/368627/barroso--criminalizacao-do-aborto-e-uma-pessima-politica-publica e em: https://www.youtube.com/watch?v=_PwprHJ0LsQ. Acesso em: 28 jun. 2022.
O objetivo é dar amparo a mulher para que escolha o melhor para si na situação em que se encontra, em especial as mulheres vítimas de violência, para que não sejam violentadas incessantemente como o que acabou ocorrendo com a criança de 11 anos e com a atriz Klara Castanho. Ter o amparo da lei, dos profissionais da saúde e do poder judiciário, colaborando para uma escolha que leve a um tratamento humanizado para a diminuição dos traumas é que deve ser o foco de discussão.